quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Transvalorizar e Crer

Na cruz do meu desejo,
Que não mais carrego,
Transvalorizo todos os valores
E curo aquilo que era cego.

Na ânsia inumana e febril
Com que se crucifica um pobre,
Torno a moral da morte
Um sentimento nobre...

Agora não me resta outra saída,
Ergo-me e grito, em disparada,
Jogo-me das vias do sepulcro
Na via menos que usada...

Observo os cervos pastando
Nos pastos das orgias cristãs...
E creio nos fulgidos penhascos
Da debilidade das minhas cãs.

Creio sem crença, de um querer humano
E nauseabundo... Creio no calor do mundo
Mais frio do que tudo mais profano...
Creio no amor humano preso no abismo mais profundo.

De nihilo nihil

A vida passa,
O homem passa,
O mundo fica mais um pouco,
O mundo passa e acaba a matéria,
Contudo a matéria não se cria, nem se destrói,
Apenas se transforma e se preserva: matéria.
E “De nihilo nihil”... Mas Lucrécio, nada...
De nada lhe adiantou e de nada lhe adiantaria
Nada vir do nada e tudo vir de tudo,
Que menos resposta teria e menos resposta teríamos...
Mas nada vem do nada e algo vem d’alguma coisa,
Entretanto nada vem do nada...
E eu, donde vim?

Prazo Encerrado

As informações mal digeridas voltam ao cume da goela e querem pertencer a minha vida, igualmente o vômito das substâncias que meu organismo rejeita tão veementemente. Observo a morte de um inseto, e ele se contorce tão lindamente, que o gozo da minha iniqüidade não pode se prender ao núcleo da minha alma. E cada átomo da minha existência esperou por este momento.

O toque da realidade extirpa todas as minhas esperanças e a ablação dos meus anseios torna o fato, já enfadonho, completamente insuportável. Já não vejo os olhos malogrados que me pasmavam em meus pesadelos, agora já me acostumei a vê-los nos espelhos da minha casa. Logo que amanhece e o sonho acaba, e a vida começa, ponho-me de pé e me recuso a fitar minha própria sombra.

Mas minha sombra me fita e diz, com sua face obscura, algo como a resposta d’algum abismo furioso, d’algum abismo mirado e observado durante toda uma existência. Todavia, não tenho medo das trevas, porquanto nela vivi e inda vivo, com os resquícios de um sol que já não nasce, com o cheiro d’uma flor que já não mostra pétalas.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Noites Urbanas

Nas vagas ruas imundas, ruelas da vida d’outra espécie de gente, viam-se perdulários em jogatina, avaros nas sarjetas – não querendo dividir o resto do pão – e ébrios nas portas dos bares, não tão belos quanto Byron, não tão ricos quanto Gray, não tão nobres quanto Poe. Mas das resoluções mais que inoportunas o mesmo romantismo urbano das musicas populares, a mesma filosofia inóspita da monarquia inglesa e o mesmo santo presságio da tirania católica. Ah! E como pareciam as ruas romanas descritas por Azevedo.

Alvacenta, a luz da lua deformava sua imagem nas poças de álcool e vômito que os becos mantinham como poço artesiano. Os velhos, insanos, tarados, sonhavam com a pederastia em cada pedaço de jovem que na rua passava e a cada olhar temente, um gozo frêmito e cômico banhava o silêncio da noite com os urros orgíacos dos degredados.

Um homem passeava, vestia roupas comuns. Um simples trabalhador que voltava para casa, cansado da pressão da rotina, acostumado a sofrer os apertos na alma, os apertos na mente para não sofrê-los no sinto. Nem um homem dos becos se atreveria a provocá-lo, a sonhá-lo, a intervir-lhe em seu caminho, pois de que teme um homem que nasceu, cresceu e há de morrer no fracasso? Alardear sobre tal criatura é, no mínimo, insano e sangra mais que estanca.

Outro homem passou, roupas finas e macias. Sim! Este permitia sonhos, ainda jovem, forte, corado, como se fosse preparado para o coito. E os velhos dos becos uivavam e os bêbados, bígamos bissexuais, sentiam desejo e o desejo os dominava. Mas sonhar não subscreve crime e tocá-lo – homem de tão alta linha – trás mais prejuízos do que lucros, mais vergonhas, mais problemas do que prazer e o prazer provindo é jovem e mirrado em demasia para o saque valer a pena; e que pena horrendamente dolorosa.

Uma dama passa – se é que destas o mundo ainda guarda em seu cofre espesso – e os desejos se descontrolam, são superados os bloqueios da razão pelas vontades do ego e quando, quase no auge da loucura, homem poderoso demais a agarra e a aperta ao peito; e dos olhos de demônio todos os outros caem... Mil ao seu lado, dez mil a sua direita e nenhum a ele chegam.

E, por fim, antes do carro de Hélio ter força suficiente para, com sua tocha inumana, arrancar Nix da paz do seu reinado, passa alguém. Cabelos sob o boné, rosto jovial, roupas largas, tênis usados, calças lindamente batidas pelo tempo e pelo esforço da lavagem artesanal, um leve esboço melancólico de sorriso. Adeus! Não fico para observar... Adeus! A Deus! A deus! E que neste momento e somente neste momento ele exista.

domingo, 17 de outubro de 2010

Recordações

A única coisa que consigo recordar é que não recordo nada. Nenhuma linha sequer, mas de que serve os olhos que tenho e para onde foi a minha concentração? E como hei de sobreviver se nem mesmo posso ler? Se nem mesmo absorvo informações...? Pago por todos os meus pecados e ainda assim não me arrependo de nenhum deles, salvo o último cometido, pois no resto da minha memória ainda ecoa o grito ardente e viril da minha vergonha.
Pequei... Doce pecado... Paguei? Ando pagando com a isenção dos meus amores e a taxa me parece alta demais.

sábado, 16 de outubro de 2010

Não Tenho Outra Vontade

Não tenho outra vontade,
Senão a mesma vontade
Que, débil, sofreu apresso e admiração
Em outros tantos séculos passados.
Não tenho outra vontade senão
A de continuar vivendo, sofrendo,
Amando, chorando, partindo,
Chegando, rezando...
Não tenho outra vontade senão
A de continuar tendo muitas outras vontades...

Tragicamente Revemos

Das coisas mais que importantes,
Das coisas mais que importunas,
O estrábico labor dos nazistas gloriosos,
Cheios do gozo imundo das mentiras,
Com veias inóspitas ao sangue.

Na tragédia de todos os sentidos,
Um sentido invólucro protege
A etimologia das tragédias,
Mas sob os olhos atentos, sensatos,
Humanamente desumanos,
Humanamente desusados
Olhei por entre os véus do deus cruel
E vi a obscena verdade:
O impudor como maior verdade.

Caiu-se as escassas fibras da moral,
Matou-se deus numa viagem à lua,
Arrematou-se o corpo magro por grande fortuna
Durante tempo em demasia e, hoje, cumpre-se
Uma profecia d’alguém que não foi profeta...

Um mundo cada vez mais amante,
Um mundo cada vez mais advogado do Diabo,
Um mundo cada vez mais ateu,
Um mundo cada vez... Um mundo de cada vez...
E esse não parece o mundo.
Não o que esperávamos, pois esperávamos demais...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Estragando um Poema

A casa inteira dormia, e dormia também a cidade, e dormia também o país, exceto aquelas cidades onde as baladas começavam às 11h e as crianças, fingindo serem adultas – sob o efeito das mágicas virtudes, dos amores químicos – sentiam na pele o êxtase das orgias sem toques, ou com toques de mais.

Eu não dormia, estudava... Revia conjugações verbais: Presente do Indicativo? Eu sou, tu és, ele é. Mas e em italiano? Io sono, tu sei, Lei ou Lui è. Os verbos tão semelhantes e na origem das línguas o mesmo defeito da língua estrangeira moderna: sem ser, sem estar... Com ser, com estar... Acoplados nas faces desfiguradas dos livros didáticos, que nada nos ditam, além de suas regras, escritas por grandes, sábios professores.

Mas as horas não passavam e os meus olhos, já cegos das luzes forjadas, feriam-me a cabeça, olhando aquela tela de pontos, que nem mesmo Seurat agüentaria e em verbo expeliria o vomito da discórdia. Porém eu não suportava, tinha de olhá-la, enquanto a cidade dormia, enquanto as virgens repousavam suas cabeças angelicais nos colos celestes d’algum deus que a iria possuir e naquela noite iria tirar-lhes todos os sentidos e todas as virtudes...

Enquanto o meu país dormia, enquanto a inspiração para este texto dormia, ou deveria estar dormindo, continuava a não dormir, mas o meu corpo se impelia à cama e a minha alma, que nem sei se existe, expelia-me do leito, dizendo coisas fantasmais, donde todos os contos de terror foram tirados.

E dos Pretéritos – Perfeito e Imperfeito – caímos no presente da mesma agonia.
Sem sono, sem sonho, sem inspiração para um poema...

E lá vai uma tentativa:

E da falta de inspiração fez-se um tema.
E de toda história contada uma estrofe,
Mas faltando uma linha para um poema
Interrompeu-se o narrador numa apóstrofe...

E, se não der certo na primeira, desistir jamais e sem hesitação, manda-se um refrão:

Oh! Mas como é lindo a tentativa,
Que sem um verso pronto
Ou uma história, ou um conto
Não torna a matéria em coisa viva.

E para estragar todo o poema, faz-se uma burrada e borra o borro com barro tirado da beira do rio, num barco de Baco, que o beco da boca branqueado, beirado, a brisa soprou e a brisa sumiu:

Mas tentando então, sem vergonha,
Podem-se trazer verdades e mentiras,
Pode-se fingir uma cegonha
E parir as odes que se aspira...

Crônica Esquisitinha

O tempo passado, já coberto das lembranças estóicas doutra hora. O verso da capa por inteiro manchado e o bolor de todo um século acumulado. O livro das eras, que em eras tais passou e sob as nuvens de flechas e as ondas de sangue tudo aventurou. Não mo deixai jogado, como se não nos significasse nada. Por tanto, abro numa pagina amarelada e começo, e ponho-me, a lê-lo...

Ainda o recordo... nas margens de Novembro – ou já no seu poente –, os versos mal lidos e os contos vividos das longas jornadas, em prol das passadas, em prol das usadas frases felizes. Uma data em um milhão e nada muito especial, mas especialíssimo para mim, onde todo um novo grupo, pouco conhecido, pouco resolvido, pôs-se a melindrar... Nas conversas de roda, nas viagens pelos poemas, por entre temas que até mil temas duvidam. Por entre o íntimo e o corar.

Que das lindas donzelas, menos donzelas não faria, mas faria duvidar. Que se pode ouvir todo um poema e em lágrimas – de alegrias, tristezas, amores, dores, vergonhas ou astucias – não findar. Mas pondo-se à prova, das duvidas solenes, das duvidas perenes, terminam em provar. E de todos os mais métodos que não o empírico hesita-se em acreditar e manda-se aos Diabos as verdades reveladas, as verdades transcendentes, as verdades apriorísticas e inatas do místico e do racionalismo.

Mas voltando à narrativa daquela tarde – ou madrugada, eu já não me recordo – donde todos os segredos, donde todos os degredos das minhas mensagens e das mensagens d’outrem por entre subterfúgios, nas costas do ardil ouviram-se contar. E que histórias o verbo que de etimologias as margens mais sujas e dos substantivos veio herdar, um na origem filosófica, outro nas peripécias além mar!

Os cheiros peculiares, as poucas brincadeiras... E tudo rumando, rumando a terminar, pois do fim mais melancólico, pois do fim mais neurastênico o diacronismo do antigo, que com velhas paródias veio conversar, transcendeu as conversas, transcendeu as histórias, transcendeu as eras e o além mar.

E terminou comigo assim! Numa história sem cabeça, sem rumo, sem pés. Numa crônica dos versos que pus a rimar, sempre no infinitivo, sempre as normas cultas tentando preservar, não deixando que tal me atrapalhe em a história contar, que do tempo da norma não cansou em passar e do parnasiano aguado, dos sapos amuados, dos versos martelados bandeira soube pregar.

E nesta mesma flâmula das cabeças invertidas, dos pés mal posicionados, fico estatizado, ou eu quis dizer estático? Que no mesmo parece dar, quando as cortinas hão de descer e as luzes hão de apagar.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Ser Brasileiro

Ser brasileiro não é viver contente
E ter por perfeito o país que temos,
Não é virar o rosto ao que lemos
No jornal que expõe o abuso do tenente...

Ser brasileiro não é chorar sorrindo
Para que nos não percebam tristes,
Nem saber se tu, perfeição, existes,
Ou se és lenda do floral mais lindo...

Ser brasileiro é correr parado
Ou parado correr mais que um velocista.
É chorar quando vos chamam ralé

E mostrar do fundo inesperado
A coragem mais que determinista
De tombar sofrendo e pousar de pé...

Debitum quod reddam

Eu espero que me ouças,
Ouve, mundo, o que te digo...
Desculpa-me a falta de palavra,
Por tal me sinto um mendigo...

Sujo, imundo da goela ao reto
E do resto do corpo desprovido,
Sem um mínimo de compaixão me puno
Com a impunidade do vencido...

Vender-me as esperanças
De um melhor futuro construído
Já não é mais que punição
E não supera o corpo corrompido...?

Amar o que me pune,
E ser pelo sumo amor punido
Já não basta o perdão
E ter por clemente o ofendido?

Se não sei perdoar
E por tanto ser bandido
Que perdão não merece
Da clemência conseguido...

Não é por tal razão
Da falta de razão afligido
Que não mereço dos pecados
Ter todo pecado eximido...

Perdoa-me, mundo...
Que do mistério mais profundo
Tem o tempo por barreira

Perdoa-me, irmão
Que do frio do céu ao gélido do chão
Não quis magoar-te nem de brincadeira...

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

No Insano dos meus versos

Na isenção das taxas da vida, sob as causas do dano, sinto-me cada vez mais plano o especulativo da idéia. E, entre a coisa toda e a coisa em parte, sinto do gosto cru a mesma arte da tecnologia... Erguendo então minha cabeça e retirando o velário espesso que me cobre até o pescoço, sinto do sapo o salto – ou do dinossauro, pois sapo o prolongamento traseiro não possui – e o tremular do seu corpo sobre a minha mão.

E assim, por mil outros séculos, vou vivendo na angustia do pouco latim alheio e do vago grego das poucas filosofias... Sabendo das causas da morte o mesmo cheiro doce e, do sêmen da vida, o ovário de todos os problemas...

Mas meu sapo está a coaxar e o podre, belo sabendo ser, continua na atmosfera a pairar, cerrando do toldo das ciências, toda beleza mórbida da política das proezas...

A meus versos, de quem nunca vos amou de verdade...

Pureza

Da infância do século,
Num décimo de vida
Findou-se da proeza
A esperança perdida

E, na poesia do tempo astral,
Entre o espetáculo ascético
Vi-me preso na inconsciência
Do regrado ser poético...

Mas, não faltando um segundo,
Na locução verbal hei de morrer
E na conjugação parifrástica
Do verbo, meu segundo hei de viver...

Sentindo da desconfiança, a maneira,
Que dos Maias maior mentira veio,
Aquela cujo dia do juízo proclamado
Fará terra sucumbir no próprio seio,

Sorvendo do leite da cruel lembrança
As chagas da crença e da ciência,
Para sobrar nas mentes já extintas
O uníssono da nossa própria excelência...